Um exercício de imaginação transdisciplinar: o Museu do Amanhã como um organismo

Luiz Alberto OliveiraCurador, Museu do Amanhã

Costumamos pensar que museus são instituições culturais públicas e, de acordo com a tradição cartesiana de dissociar Sociedade e Natureza, devem ser comprendidos exclusivamente por meio de conceitos vinculados ao campo da Cultura, isto é, em termos sociais, econômicos e antropológicos. Contudo, na atualidade as chamadas Ciências dos Sistemas Complexos oferecem perspectivas diferenciadas, em que as separações acadêmicas tradicionais entre saberes sobre os seres naturais e sobre os agentes culturais são frequentemente ultrapassadas e superadas. Seria possível, por exemplo, imaginar-se um equipamento como o Museu do Amanhã em termos biológicos ou ecológicos – como se fosse, digamos, um organismo?

Todo organismo consiste de um sistema estruturado de fluxos de substâncias (matéria), atividade (energia) e informação (organização), que tem a capacidade de assimilar elementos do meio em que se encontra e rearranjá-los com vistas a um objetivo essencial: reproduzir-se, isto é, produzir réplicas de sua própria estrutura. Uma fábrica que se (re)fabrica: para realizar esta proliferação, projetando-se em futuras gerações, o sistema-organismo precisa adaptar-se continuamente às permanentes transformações de seu ambiente, e portanto seu diagrama estrutural, que define suas funcionalidades, não pode ser demasiado rígido. Flexibilidade e resiliência são assim as diretrizes básicas que todo organismo bem-sucedido precisa desempenhar.  

A Evolução biológica desenhou, ao longo de milhões de anos, sistemas orgânicos extremamente sofisticados – formigueiros, fungos, polvos, orquídeas, tigres. Em muitos destes organismos avançados encontramos certas capacidades em comum: aparatos sensoriais aptos a apreender estímulos do ambiente, permitindo a formação de uma imagem interna do mundo externo; aparatos motores que permitem reagir e agir sobre o entorno a partir destes estímulos sensoriais; aparatos de registro e acumulação de estímulos (memória) que dão lugar a padrões inatos de comportamento (instinto); aparatos de autopercepção que permitem formar uma imagem interna do mundo interno (e, no caso do Homo sapiens, um inacabamento endógeno, uma duradoura abertura de si que vem a ser continuamente preenchida pela linguagem, isto é, pela sociedade).

Ora, se é válida a imagem de um museu como um organismo, estas características devem estar presentes, em algum grau, e de algum modo. Quando o Museu do Amanhã foi projetado, foram previstas implementações de várias destas funções: o Museu precisaria ser aberto ao meio cultural, dialogando sempre com outros equipamentos e instituições, com sua comunidade de vizinhos e com seu variado universo de visitantes. Deveria atuar invariavelmente segundo diretrizes éticas fundadoras – Sustentabilidade e Convivência – para divulgar ao público as bases positivas para a construção de nosso futuro comum – Conhecimento e Inovação. Contaria com dispositivos de registro das interações do fluxo de visitantes – a seiva ou linfa do Museu – com os conteúdos apresentados, que permitiriam formar uma imagem de seu metabolismo operacional (o sistema Íris). Uma vez que atualizações constantes destes conteúdos seriam obrigatórias (evitando que, fossilizando-se, se convertesse em um Museu do Ontem), também com uma rede de conexões com entidades acadêmicas reconhecidas para assegurar um abastecimento constante de dados bem fundamentados (o Observatório). Além disso, um aparato de memória, flexível e renovável, que pudesse ao longo do tempo constituir um corpo de legados e aprendizados que orientasse futuros ajustes e aperfeiçoamentos (o sistema Cerebro). Por outro lado, assegurar o enraizamento no solo cultural histórico do entorno da Praça Mauá, tão decisivo para a formação da Cidade e do País, e a paulatina construção do pertencimento ao espaço comum de cidadania com nossos vizinhos (o Programa de Relações Comunitárias). Dispor de meios para aferir o impacto da visitação sobre os usuários, aferindo o grau de engajamento que essa visitação poderia suscitar (o sistema Íris+ e o setor de Pesquisas). Participar de modo incisivo do ambiente de inovação tecnológica e criatividade artística, fomentando conceitos e iniciativas originais (o Laboratório de Atividades do Amanhã). Relacionar-se com outras instituições análogas, nacionais e internacionais, igualmente voltadas à exploração de cenários de amanhã possíveis e desejáveis (a iniciativa FORMs). Implementar os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) das Nações Unidas como guias para realização destes cenários positivos. E, sobretudo, dedicar-se integralmente à promoção de ações educadoras como meios eficazes e indispensáveis de formação e transformação de pessoas e sociedades (o conceito de Museu Educador).

A arquitetura de Santiago Calatrava fez pousar sobre a Baía da Guanabara um impressionante organismo de metal, concreto e ideias. Quem sabe, um pássaro titânico, pronto a decolar rumo a novas altitudes? Ou seria, ao contrário, um intrigante ser marinho, saído da Baía mesma, e prestes a mergulhar em busca de novas profundezas? De qualquer modo, podemos imaginar bem em seu centro um coração que pulsa, que ressoa as cadências do passado e antecipa os ritmos do porvir. É o tempo, sempre, do amanhecer.